O lugar do outro compôs uma mostra coletiva intitulada As palavras e as coisas, que fez parte de um evento em homenagem aos 20 anos da morte de Michael Foucault em 2004. Abordando o sistema prisional, utilizei uma frase do pensador francês, que resumia o sentimento que havia experimentado ao visitar o Centro Educacional São Lucas, a extinta instituição para menores infratores da região metropolitana de Florianópolis, que mais se assemelhava a uma casa de detenção, conforme fotografias da série que leva o nome da exposição O lugar do outro . Parte do trabalho teve início durante uma estadia no Rio de Janeiro, quando apresentava a exposição Invólucro, 2004, cujo questionamento era o nascimento e a morte. Abria com uma frase do carioca Vinícius de Moraes: “Outra carne virá. A primavera / É carne, o amor é seiva eterna e forte. / Quando o ser que viveu unir-se à morte / No mundo uma criança nascerá”. A frase escolhida já reservava uma potência premonitória (infância dos mortos), embora não percebida no período.
Figura 1: SÉRIE “O LUGAR DO OUTRO” ACERVO MASC
Era “maio de 2004”, houve uma sangrenta rebelião na Casa de Custódia de Benfica. As mídias jornalísticas abordavam o tema, espetacularizando a tragédia e reforçando o estigma da perversidade dos presos, responsabilizando-os unicamente. Fragmentei a matéria e coloquei em papeis dobrados, acondicionados em dispositivos (assépticos de acrílico), diante de um nicho (uma janela, uma televisão, uma jaula), nele fixei uma foto que fazia parte da matéria de uma revista, na qual muitos jovens (todos negros e pardos) estavam comprimidos contra uma grade de uma das celas da Casa de Custódia de Benfica (Figura 2).
A intenção era tirar o espectador da zona de conforto, de uma ampla matéria falando quanto custa para os bolsos do contribuinte a “escória da sociedade”. Como no biscoito da sorte “às avessas”, o visitante era convidado a pensar somente sobre o fragmento que escolhera. Num deles havia uma frase de Foucault.
Figura 2: Instalação interativa
[…] A animalidade escapou à domesticação pelos valores e pelos símbolos humanos; e se ela agora fascina o homem com sua desordem, seu furor, sua riqueza de monstruosas impossibilidades, é ela quem desvenda a raiva obscura, a loucura estéril que reside no coração dos homens. (FOUCAULT, 2004, p. 18).
Porta do Centro Educacional São Lucas, instalada dentro da exposição O Lugar do Outro.
O objetivo era cercar o espectador, proporcionar uma imersão em uma “instalação”, em um espaço arquitetônico, para alertar a que ponto chega nossa história de exclusão social. Ao fazer uma aproximação da arquitetura com o cinema, Benjamin fala da arquitetura como “protótipo de uma obra de arte”, com a vantagem de uma recepção intuitiva, distraída e coletiva. O filósofo estava atento à necessidade de novas formas de percepção, não apenas visual, através da contemplação. E, quando associa a arquitetura ao cinema, reivindica uma habilidade de recepção tátil, porque ocorre uma imersão física desse corpo ao lugar, que, no exemplo, era então O lugar do outro. A intenção era assumidamente “capturar” esse espectador (atraí-lo para contar algo relevante), porém utilizando-se de outros meios (não esperando o recolhimento dele diante de uma obra), provocando-o. “Aliás, como para cada indivíduo existe a tentação de se furtar a tais tarefas, a arte conseguirá resolver as de maior peso e importância se conseguir mobilizar as massas. Concretiza-o no cinema atual.” (BENJAMIN, 1992, p.110). Essa ligação leva a um indício social importante, quando bem empregado conceitualmente, porém é evidente que o pensador referia-se ao “suporte cinema”, que é diferente das outras artes, pois a potencialidade do aparelho cinematográfico altera a relação das massas com a arte, como afirma: “reacionários diante de um Picasso, transformam-se nos mais progressistas frente a um Chaplin” (BENJAMIM, 1992, p.100). A condição arquitetônica de imersão propiciada pelo cinema promove uma vivência, uma ligação íntima com a atitude do observador “especializado”, diz Benjamin, que, embora crítico, não deixa de ser um examinador distraído.