Muito raramente, nos dias de hoje, vê-se um diálogo fluente entre o cinema e a poesia. A palavra e a imagem nesse lugar, onde se vai contar uma história, um sonho, um trauma, um momento… Que me permito chamar de silêncio. Silêncio este que nos conduz, ou não, ao sublime encantamento das análises, dos afetos e desejos. Na verdade, uma transcendência do real! Se bem entendo, o desejo de uma nova percepção do mundo da mulher. O particular poetizado, rompendo com o ser/mercadoria. E, no que vai digerindo o espaço da dor, o movimento da personagem realiza intervenções poéticas que terminam com dois poemas diretamente ligados à consciência e à liberdade de ser demasiadamente humana.
O cinema talvez seja esse encontro de opostos. Mapeador de movimentos duros e afetos. E precisamos, sim, da ficção para ensaiarmos um ser mais humano e melhor, pois todos os sistemas existentes não nos autorizam a valorizar o entendimento, o afeto e a criação seja ela lá qual for. Querem a violência, a miséria, o espetáculo, a fome, a guerra… E, no que reina uma densidade infinita de vazios, o desprezo passa ser, sim, pelo saber e pelo humano! O desprezo cultivado na política, na religião, na burocracia, no trabalho, nos afetos e na própria vida. Eis, pois, no nosso caso, a doença do capitalismo: o horror reservado aos poucos que ainda pensam, sonham, fazem e amam.
Considero imoral e injusta a força medíocre da burocracia. E foi sempre assim. É assim, e continuará sendo assim! Basta ver a força dos porcos e imundos nas repartições públicas. Digamos, associações e lembranças de significações desumanas passadas, e, na verdade, sempre presentes. E, entre clichês e percepções, o tempo da mulher sofrida, sendo poeticamente observado por Giovana Zimermann, no seu delicado e angustiante “BranCura”. Um filme de livre engajamento com o universo da narrativa poética.
Como bem fala Todorov: “Para produzir a obra de arte, deve-se aceitar o mundo, uma prática que começa com a tolerância, prossegue com atenção e respeito e culmina no amor – um amor despojado do desejo egoísta de posse”. Mas, “branCURA” não é uma ilustração televisiva das novelinhas e novelões do universo da mulher, mas o niilismo e a brutalidade sendo questionados pelo cinema autoral. Assiste-se, com muita angústia, à capitulação da dor e ao soerguimento da vida como obra de arte.
O filme de Giovana Zimermann arrebata e comove em tentar compreender o lento movimento do desencanto da personagem, lindamente vivida por Angélica Mahfuz. Tudo se passa como se o insensível lado dos afetos fosse o personagem principal. Não é, mas se faz presente! Penso em
Clarice Lispector, Rilke, e Antonioni, no seu “Deserto Vermelho”, em… são muitas as referências. A jovem e talentosa atriz vai levantando os véus obscuros do seu trauma, da sua solidão, e o faz com lentos movimentos que lembram as esculturas de Rodin. E, no seu percurso dos desencontros, a violência, as cicatrizes, o sangue, as dores, o gesto e talvez a morte.
Um filme de esvaziamentos dos avessos lados das dúvidas, que são as tantas e tantas certezas nas quais somos atados, da educação à morte. Das famílias mal formadas pela religiosidade aos hospícios. No filme, uma rica tentativa de reunificação de pedaços vindos do esgotamento. O esgotamento na presença e nas imagens, que remetem a uma musicalidade ainda que sofrida, poética. John Cage dizia que: “Um meio de escrever música: era o de estudar Duchamp”. Precisa falar mais?
O curta “BranCura” é uma pequena ópera visual de passagens, que nos remetem a Chopin, Satie e, por que não, a Billy Hollyday? Imagens poéticas que se multiplicam numa meditação sensível sobre o uso da violência no mundo da mulher. A mulher/intuição. A mulher/dor. A mulher/poesia. A mulher/saber. A mulher/sonho. A mulher/mulher, com seus encontros, desencontros, caminhos e espaços. Aliás, a jovem e bela atriz é uma experiência criativa única no nosso cinema. É mais que a personagem e se deixa levar pelos ventos da criação. Uma projeção ímpar de um compartimento afetivo com o tema. E a interpretação dessa talentosa atriz, me fez lembrar muito a música “Gymnopédies”, de Erik Satie, numa corporeidade real da dor, capaz de fazer doer a percepção do outro. Que no seu processo de construção e movimentos vive caminhos obscuros muito comuns; mais às mulheres pobres.
E mais: uma atriz que me faz ir além da sua representação, num processo de interiorização do cotidiano trabalhado não como ofício, mas como paixão. Que faz da presença e do movimento uma experiência adquirida, numa espécie de ressignificação de eus. Eus que nos fazem renascer entre sonhos, impulsos e ações desafiadoras para verdadeiros atores! Personagem que se metamorfoseia em cada situação, indo das tantas subjetividades da atriz, a uma verticalidade de situações concretas. E Giovana Zimermann a filma como um conjunto de potências extraídas do mundo, como anti-espetáculo, com o corpo físico ligado a uma interioridade dilatada, capaz de estabelecer uma espécie da brancura de onde o filme parte, resgatando percepções e sentimentos no cultivo da delicadeza. Como diria Rimbaud: “É falso dizer: eu penso;/ Deveriam dizer: pensam-me”. Ou seja, não vos apiedai dela! Ela é só uma multiplicidade poética de imagens e ideias. Ela, se enfaixando com gazes, de costas para o quadro, é quase a vivência de uma dança sem movimento. Que prazer ver essa bela atriz se procurar na personagem!
De algum modo a personagem tenta criar uma obra de arte que lembra tanto uma vagina como um cinto de castidade. É a presença do sublime da criação do fazer! Um filme que desconfigura o banal na procura poética do real. Afinal, o que é a vida? Kafka diria que “o significado da vida é que ela termina”. Daí pra frente é, sim, a tentativa do encontro e do prazer nem sempre fácil. E, ao criar sua narrativa complexa, Giovana Zimermann, transcende experimentações e regras no movimento musical das imagens. “BranCura” é um filme/sonho, ilustrado com imagens delicadas e poderosas de uma artista visual ímpar no nosso cinema. Por fim, a imagem como realidade de encontros e afetos partidos. Herança maldita da má formação de todos nós. E, entre o desejo e o real, uma soma infinita de sonhos irrealizados, tendo de um lado seres que fingem, do outro os doentes e entre os dois os que se deixaram morrer para a vida. E entre medos e angústias, o vagar sem direção. Por fim, diante da água, seu encontro com a poesia de Baudelaire e Cruz e Souza. Uma maneira solar, de se entender, de se possuir como mulher. E não ser possuída como um simples objeto descartável. Isso a TV e a religião fazem melhor!
LUIZ ROSEMBERG FILHO/RÔ